top of page

Escada

Por vezes a vida dá-nos razões para sentirmos uma imensa gratidão. Quando percebemos que existem pequenas coisas que não têm importância alguma e que outras pequenas coisas têm toda a importância. Fazer a gestão desses elementos, arrumando-os no lugar certo, é construir uma escadaria que nos vai conduzindo, degrau a degrau, num jogo de luz e sombra, a um lugar onde encontramos paz. E lá chegados, de pernas cruzadas como pequenos budas, a nossa voz interior segreda-nos, Vês? Tudo está bem quando se está bem. E ao abrirmos os olhos para dentro de nós, tentando conhecer a voz que falou connosco, entendemos que estivemos sempre ali...mas de olhos fechados, nada mais vendo que o sangue, o osso, a veia, a carne, incapazes de alcançar a nuvem, a erva, o seixo, a flor.

(Blogue, 6 de Abril 2012)

A casa

Na Casa de Anil há um prodígio que ninguém pode revelar. E não existem lendas nem livros que desvendem o seu mistério. Os homens e as mulheres, que em sonhos entram naquele lugar tecido em algas e corais, transformam-se em peixes e ondinas. A pele cobre-se de escamas e para sempre se calam as suas vozes, emudecidas por inesperadas guelras.  Enquanto, na praia ali perto, a maré revela seixos, búzios e caranguejos, eles serpenteiam pelos quartos e salas, por entre os móveis esculpidos em cristais de quartzo e lápis-lazúli, cruzando-se com anémonas cintilantes e medusas de corpo transparente. Por tanto tempo ali aprisionados, ondulando languidamente no interior aquático daquela casa, acabam por olvidar a sua natureza humana. É nessa hora que a maré cheia os vem resgatar, num ritual de consagração aos mares. Mil ondas batem às  janelas, desfazendo-se em espuma na soleira da porta. Fatalmente, os peixes são arrastados rumo ao oceano, para habitar as águas do mundo inteiro. As ondinas, levadas em mornas correntes, desaguam nos lagos, construindo, na penumbra das areias azuis, as suas casas de cristal.

O dia vem despertá-los, mas é apenas uma cama vazia que a luz da manhã encontra. Só o tom azulado dos lençóis húmidos conhece o beijo faminto da Casa de Anil, que se vai alimentando com a alma dos poetas e a fantasia dos sonhadores.

(Blogue, 9 de Maio 2013)

Mundos

Ser-se dois em dois pequenos mundos. Desde que os olhos se cruzem de vez em quando. A medo, ela pergunta: se eu me sentir demasiadamente só, salvas-me? 

(Blogue, 6 de Março 2013)
 

Carta de uma dona de casa inconsciente

Exmo. Sr. Fim do Mundo:

 

Bom, parece que isto acaba amanhã, 21/12/12.

Então...adeus. 

Gostei muito deste bocadinho. Quero dizer, houve alguns bocadinhos de que gostei só assim-assim. Outros mesmo nada, nada.
Dê-me aí uma ajudinha, porque não sei lá muito bem o que fazer nestas ocasiões. 
Deixa ver...

Ver se me lembro de tirar a roupa da corda e os frescos do frigorífico, para não estragar. E conferir que não ficou nada ao lume nem radiadores acesos ou torneiras a pingar. É preciso poupar, já se sabe. Não, espera, estou a pensar nas contas...já não vou ter que pagar contas! Nem a prestação da casa! Olha que fixe. Bem, até parece que ia conseguir pagá-la, tá bem, tá. Assim até dá a ideia que a coisa ia, ninguém vai saber. Melhor, não passo vergonhas. 

Então...e as cartas do IRS e da Segurança Social, que tão simpaticamente fizeram questão de me enviar, neste mês de Dezembro? Como é que ficam? Deito-as fora, não me preocupo mais com aquilo...? As ameaças pareciam sérias... irão eles penhorar-me a morte? Será que tiveram em conta o fim do mundo quando mas enviaram? E os cães, com quem é que deixo? Com a vizinha não, que tem andado para o constipadita. E ainda por cima é uma parva, sempre a dizer para eu não deixar os cães fugir para o quintal dela. Nah. Olha, solto-os. Ficam para aí todos felizes, a comer restos, a saltitar entre os destroços. 

Deixa ver mais...ehhh...

O correio! Olha, peço para encaminharem para casa dos meus pais, que o fim do mundo não chega lá. No fim do mundo já vivem eles há que tempos e ainda cá estão, graças a deus.

E o lixo? Não me posso esquecer de despejar o lixo e ir ao ecoponto levar este montão de garrafas. É preciso deixar as coisas mais ou menos em ordem, para quando o mundo puder recomeçar. 

........ hmmm......

Bolas, acabei por não emoldurar aquelas fotografias e o muro lá de fora, olha, fica por pintar...isto de adiar indefinidamente tem este problema.
Bom, então até uma próxima oportunidade!

P.S. Ah, já agora, o senhor podia-me dizer a que horas é que começa o evento? É que sabe, dava-me jeito ter a manhã livre...

(Blogue, 21 de Dezembro 2012)

onfesso que uma certa letra, um dito caractere, era um símbolo de grande personalidade. Tudo o que o caracterizava andava intermitente, diluído em "c's" invisíveis, num estatuto duvidoso que o Acordo ortográfico ameaçava confusamente. Flutuando diáfano, de alma em alma, de palavra em palavra, de corpo leve apesar de caracteristicamente pesado, já não sabia onde se arrumar. Um sentimento de mal-querença, desajuste, dis-se-ia, até, injustiça. O C andava hesitante, cabisbaixo, sem mesmo ter a certeza da sua razão de existir. A antiguidade do corpo já não importava. Era, fatalmente, um caractere exilado, extinto, sem carácter.

(Blogue, 12 de Outubro 2012)

De acordo

A fotografia

O homem aproximou-se e o chão era um rochedo organizado. Bicolor – não um tabuleiro de xadrez, não – antes uma série de degraus nivelados, lances regulares, cor de marfim, onde, a espaços, agrupados em dois e depois em três, outros degraus, desta feita elevados, onde ele podia repousar o seu corpo. As suas mãos. Atordoado e exausto de percorrer escalas de sons movediços, tão distintos, sob a ventania que o chicoteava, os cabelos rebelando-se, arranhando a superfície dos olhos, sentou-se numa das rochas de ébano e logo se sentiu cair. O chão negro abatera-se sob os seus pés. Não havia ébano nem marfim. Apenas um céu de antracite. No ar soou a nota que faltava, a preencher um intervalo, não mais do que meio tom…produzindo um acorde dissonante. Ainda foi a tempo de sorrir, admirando o estranho ponto de fuga que a paisagem bicolor compunha e, rendido, preparou a lente da sua máquina e, leve como um anjo, tirou a fotografia.

(Blogue, 12 de Maio 2012, em homenagem a Bernardo Sassetti)

Sangria

Ergueu-se da cadeira e pensou: Ai é? Não consigo escrever? 

Preparou uma salada de rúcula com queijo parmesão ralado e vinagre balsâmico, que colocou junto a duas fatias de salmão fumado temperadas com pimenta preta, um pouco de salsa e cebola picadas e sumo de limão. Com um esgar desafiador para consigo mesma serviu-se de dois copos generosos de sangria e bebeu-os com alguma sofreguidão, na esperança de entornar a prosa fértil sugada do seu espírito através dos efeitos do álcool. Para surpresa sua, as palavras surgiram sem dificuldade e, ao chegar ao ponto final do seu texto, a mulher olhou assustada para o copo vazio e disse-lhe


Contigo não há mais conversas. Julgas que chegas aqui, sem mais nem menos, e me arrancas aquilo que quero dizer? EU é que escrevo, não és tu!
 

Se não fosse capaz de entornar as palavras, ao menos que as fosse dispondo, uma a uma, morosamente. Uma prosa tecida ponto a ponto, sóbria, de passos seguros, para que não perdesse o controlo da sua própria história. 

Deitou-se, fechou os olhos e, teimosa, desperdiçou o artifício fácil. A arrogância da sua preguiça. E quando se cansou de navegar através de ondas feitas do sumo cálido e morno das amoras, dos mirtilos, morangos e framboesas, adormeceu. Certa de que o sabor das bagas seria suficiente para tecer sozinha o seu manto silvestre.

Maria

Maria ajeitou as almofadas da cama e sentou-se a beber o chá de camomila e a comer as bolachas. Gostava de prolongar aquele momento, depois de a auxiliar trazer a pequena ceia que acompanhava a toma dos medicamentos, antes de dormir. Pegou no pacotinho de bolachas, abriu e tirou a primeira. Como rato, roeu, com método e moderação, meio centímetro a toda a volta, até atingir o desenho geométrico que costumava reproduzir a esferográfica, no seu caderno de capa roxa. O rebordo da bolacha apresentava-se agora rugoso e irregular. Maria usou a língua para limpar os vestígios de massa farinhenta colados ao céu-da-boca e entre os dentes. Ao mesmo tempo, observava o vapor que saía da chávena, a arrefecer sobre o tabuleiro. Quando considerou terminada a missão de limpeza, tornou a enfiar a bolacha na boca. Desta vez repetiu a operação com muita cautela, até chegar aos oito minúsculos orifícios arrumados em duas semicircunferências. Os incisivos não avançaram mais do que o necessário, para não correr o risco de morder um dos dezasseis furos. Não perdoava a si mesma a mínima distracção. Era forçoso ir mordiscando a bolacha com extremo cuidado, esculpindo uma segunda bolacha mais pequena, onde poderia ler-se a palavra “Maria”, central, e sentir-se a textura dos pequenos pontos que perfuravam a massa. Maria colocou à frente dos olhos o que restava do biscoito, para admirar a sua obra: ali estavam eles, intactos, rodeando as letras de pés duplos, que lembravam os pezinhos dos pássaros. O “I”, de uma só pata, podia ser um flamingo de cabeça escondida, um espeto ou um osso delgado, posto ao alto. Os “A’s” assemelhavam-se a cabanas de índio ou a duas pessoas de cabeças encostadas, a darem um passou-bem. Com uma satisfação infantil, Maria trincou, enfim, as duas extremidades que compunham um total de dezoito furos e só se deteve quando, na ponta dos dedos, sobrou apenas a palavra “Maria”. Tornara-se numa habilidosa artesã. Já só raramente lhe faltava o jeito. Estudando o brilho dos seus olhos, seria natural pensar-se que aquele pedaço minúsculo de bolacha seria, quem sabe, o prémio pela sua minúcia, mas não. Esses poucos centímetros feitos de farinha de trigo, açúcar, gordura de palma, xarope de glucose, lecitina de girassol, bicarbonato e metabissulfito de sódio e glúten – há tantos anos gravados com o mais português dos nomes – eram a parte que Maria deitava ao lixo. Se as senhoras da limpeza se dessem ao trabalho de vasculhar o que recolhiam diariamente na manhã seguinte, às sete em ponto, iriam encontrar, no fundo do caixote de plástico, seis Marias desprezadas.

(Blogue, 21 de Março 2011)

A mosca

Tenta concentrar-se no que está a  escrever, mas não consegue. Aquela mosca, que chegou há uns minutos, veio para ficar, instalando-se como uma amiga indesejada e inoportuna, daquelas que, por mais que enxotemos, acabam sempre por tornar a pousar na nossa vida: uma melga. Insiste em passar à sua frente, em colar as patas nojentas ao monitor, em aterrar em cima das palavras que ela já escreveu, esvoaçando nervosa, frenética, estúpida, confundindo-se com o cursor, confundindo-a. Pousa no teclado, na lâmpada do candeeiro, no "abat-jour", no F9, no "M", no Enter, no "Caps Lock". Ela suspende os indicadores e a raiva, para que a ideia não lhe fuja, o raciocínio não lhe escape. A mosca não quer saber, pousa-lhe nas costas da mão, no risco direito dos cabelos, no cheiro quente que exalam as raízes da sua cabeleira. A irritação provocada pela mosca que não sai, não há meio de sair. Ela apaga as luzes, abre a porta do escritório, acende as do corredor...e nada. Ao invés de sair, a mosca pára na escuridão, pois sabe que não pode voar às escuras e recusa-se a abandonar a sua missão: impedi-la de escrever.

Até que acontece. A mosca distrai-se, por fim. Talvez com uma qualquer frase a que achou graça, uma linha que a fez reflectir.

Então ela, que graças à raiva adquiriu o instinto de caça de um gato, num movimento impiedoso apanha o bicho desprevenido na tecla "X" - a tecla errada, minha amiga! - e zás! Ali fica, carregando com ódio no quadradinho minúsculo e cinzento, até a esmagar bem esmagadaxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx....

(Blogue, 3 de Novembro 2010)

Sapatinhos vermelhos

Há pessoas que parecem ter calçados os sapatinhos vermelhos de Hans Christian Andersen, irresistíveis e diabólicos, que não conseguem descalçar. Então dançam, dançam sem parar, até tombarem exaustos, vítimas da sua excessiva ambição e vaidade. Todos temos de calçar os nossos sapatinhos vermelhos de vez em quando e dançar, dançar sem parar, ao som do tambor, ao ritmo da valsa, até quase nos amputarem os pés, como fez o lenhador. É bom ter cuidado e não deixar que nos mutilem a alma, amputando-nos a paz, o tempo, a simplicidade das coisas puras. Dancemos sim, ao som da melodia privada e muda que cada um conhece como o rosto de um velho amigo; e quando o tambor chegar, vamos pegar nas baquetas e tocar ao ritmo que habita dentro de nós. Sapatinhos vermelhos feitos de trapos, mesmo que sem lustro, mesmo sem a cintilação evidente das coisas vistosas…mas serão os nossos sapatos e nós, os donos dos nossos passos.

(Blogue, 6 de Setembro 2010)

Borboletas

Está provado cientificamente que, devido à sua anatomia, as borboletas não deveriam conseguir voar. A forma do seu corpo, a configuração e peso das suas asas, tornam essa habilidade impossível. 

Mas como as borboletas não percebem nada de ciência, voam. Trapalhonas, de asas frenéticas, em voos sem jeito nem justiça, mas ainda assim, vão voando, avançando, até conseguirem, enfim, chegar à flor ou pousar na ponta do nosso nariz, se for esse o seu desejo mais profundo. 

E ainda bem.
Há pessoas que são uma espécie de borboletas.
Que apesar de não serem escritoras, escrevem.
Que apesar de não serem bailarinas, dançam.
Que apesar da incerteza não olham para trás.
Que apesar de não serem ricas, viajam pelo mundo inteiro.
Que apesar de não terem uma multidão que as escute, sobem ao palco e dão o seu melhor.
Que apesar de não morarem num castelo, nos recebem com majestade.
Que apesar de tropeçarem na corrida, não deixam cair o sonho que levam nos braços.
Que apesar de não serem borboletas, voam. Como elas.
E ainda bem.

Gavetas

"O Contador Antropomórfico", 1936, SALVADOR DALÍ

Chuva

Nove horas da manhã. Instalada no sofá, lendo "As velas ardem até ao fim", de Sandór Marai, vejo a luz esmorecer, como se o relógio tivesse avançado várias horas e o tempo saltado para o fim da tarde. O ar tornou-se espesso, a página amarela, de papel antigo. A chuva abateu-se, aliviando o peso excessivo do céu, para devolver a luminosidade e a brancura ao papel. Entreabri a janela para sentir o cheiro da terra húmida. A tijoleira mais escura, as folhas verdes pingando, gota a gota, sobre os pés de plantas e flores enterrados em grãos cor de café. Torno a fechar a janela e regresso ao meu livro. O serra da estrela olha-me pela vidraça, arfando sem sentido, graças ao seu eterno casaco de pelo generoso, tricotado para paisagens feitas de neve. Sacode o corpanzil inteiro, de vez em quando, indiferente ao desconforto. Quer entrar, não para fugir da chuva, mas para se deitar aos meus pés, armado em bicho fiel. Não deixo. Está de castigo, como o sol, encerrado num quarto escuro feito de nuvens de antracite, que sufocam o seu calor. O musgo cresce, cobrindo a pedra, avançando sobre as ranhuras do muro. Tudo se transforma em água, tudo imerge sob a chuva sem fim, até que me sinto cavalo-marinho dentro da minha própria casa e avanço entre páginas feitas de algas e corais.

(Blogue, 16 de Fevereiro 2011)

Porque somos como o quadro de Dalí, compostos por gavetas irregulares e semi-abertas (ou semi-fechadas?) na solidão de um quarto, pedindo uma espécie de socorro ao mundo que vive lá fora, sob a luz, num gesto de mão que não sabemos bem se representa aceno e convite, medo ou proibição. E o corpo assim, descarnado, o esqueleto quase em exposição, cada gaveta uma costela.


Quando era pequena, tinha a mania de bafejar os vidros das janelas e fazer desenhos. Era uma maneira de matar as horas de inverno e fazer alguma coisa alegre daquela condensação fria e triste, enquanto se ia revelando o mundo lá fora, à medida que o desejo avançava. Recordando isso, saíu-me isto...
 

Hálito

Sou criança sem recreio
Atrás de um vidro de inverno 

Lanço pequenas nuvens brancas 
Sobre os olhos desta casa

Na tela limpa, sem receio
Transformo os dedos em pintores
No hálito morno das minhas asas
Desenho amores que desprezei 
No longo inferno das minhas dores.

Em dias maltratados 
Limpá-los, é tudo o que sei 
Com aerossóis e jornais do dia
Onde letras miúdas de injuriados
Contam a ofensa das fortunas
Dos submarinos e foguetões
Pontes e estradas e até carris
E fecho a janela, com débil prudência
Ao mundo de bandidos e ladrões
E temo escapar por um triz 

Já não traço sóis nem tantas meninas
Não trago amores nem luas frias 
Não espreito as abelhas nas flores do jardim
Escondida à janela cristalina
Escondida do mundo, perdida em mim

A pureza teimosa do vidro 
Que os meus dedos já não embalam
Quer ser jardim, menina, cupido 
Mas ao olhar as lágrimas frias
Escorrendo em gelo derretido
Só vejo ruas, olho os candeeiros
E a cinza invernosa, sem abrigo
E, ai de mim! Terei de os limpar 
Quando a janela deixar de chorar

Os olhos da minha meninice 
Não são anseios, não são retiros
Nas mãos confirmo um novo pesar
As sombras risíveis da velhice
E guardo o meu hálito já crescido
Para a amargura dos meus suspiros

(Poema meu, Setembro 2010, publicao no blogue em 10 janeiro 2011.

Marés

Maré cheia, maré vazia, quarto minguante, crescente, lua nova, lua cheia. A nossa vida já vem assim, bem traçada na respiração das marés, nas metamorfoses desse corpo de mulher celeste, na dança regular e ilusória do sol. Somos nós que dançamos, inconcientes desse lento carrossel que nos altera o humor, que faz oscilar as nossas vontades, que nos deixa lúcidos ou embriagados, que nos adormece ou inspira, ao sabor das estações e dos elementos, da chuva, do nevoeiro, da tempestade, dos aguaceiros, dos dias iluminados, das tardes ardentes, das noites amenas do estio mais generoso.

Os dias que temos dentro são feitos de matéria celeste, tecidos na inconstância constante da lua, no vaivém das marés, na coreografia do girassol que habita o telhado imenso do mundo; e tão verdadeiro é o ditado que diz, Não há mal eterno nem bem que não esmoreça, como isto, de sermos estrelas minúsculas cintilando hoje, invisíveis amanhã, quando nos oculta o manto da noite num céu vestido de nuvens. Brilhando ou não, existimos sempre, mesmo como estrelas cadentes, decadentes, ou exaustas, porque um novo dia puxa o lustro ao nosso corpo e faz-nos brilhar outra vez. 

(blogue, 29 de Setembro 2010)

Nanã Sousa Dias

bottom of page